domingo, setembro 08, 2013

Carta Aberta ao Professor Jorge Paiva sobre incêndios florestais



Caro Professor Jorge Paiva,

Sou henrique pereira dos santos, não sei se se lembrará de mim.
Temo-nos cruzado aqui e ali, mas durante algum tempo cruzávamo-nos com alguma frequência no comboio das seis da manhã, o Professor indo para Coimbra, eu a ir para o Porto.

Uma vez por outra, conversámos brevemente sobre as nossas divergências quer em relação ao fogo, quer em relação à vocação florestal do país, e nesse contexto dei-lhe o meu livro “Do tempo e da paisagem” por ser a maneira mais fácil de fundamentar as minhas opiniões.
O Professor chegou a dizer-me depois que não concordava com o que eu dizia no livro, mas penso que nunca conversámos exactamente sobre as razões de discordância.

Escrevo-lhe agora como resposta ao seu artigo de ontem no Público “Incêndios florestais, causas e consequências”.
Com certeza há várias coisas em que concordamos, difícil seria ser de outra maneira.

Noutras não sei se discordamos ou se simplesmente damos importância diferente aos diferentes factores em presença para explicar a realidade dos incêndios florestais.
A mais profunda destas diferenças está no valor que atribuímos à pastorícia no sistema de produção orgânica tradicional. Carlos Aguiar é a pessoa que mais insistentemente fala na gestão da fertilidade associada a estes sistemas de produção, sendo quem me indicou os trabalhos de George Estabrook, muitíssimo interessantes e luminosos, deste ponto de vista.

Infelizmente penso que Estabrook terá morrido antes de conseguir publicar o livro que reunia todos os seus estudos sobre Portugal.
Para além deste aspecto, onde não penso que exista divergência, mas apenas uma diferença de valoração deste facto essencial na interpretação da evolução da paisagem, há no seu artigo algumas coisas que francamente não compreendo, de tal maneira me parecem pouco úteis para se chegar a soluções razoáveis de gestão do fogo em Portugal.

A primeira, menos importante, é a contabilização que faz dos carvalhos cortados para os descobrimentos. Confesso que 5 milhões de árvores, em várias dezenas (na realidade, centenas) de anos, dando valores que dificilmente passam as duas árvores cortadas por hectare, me impressionam muito pouco. Se um carvalhal tiver duzentas árvores por hectare, estamos a falar de um corte de 2% ao longo de várias dezenas de anos, ou seja, uma intensidade de uso perfeitamente compatível com a manutenção dos carvalhais.
Não vejo pois como pode esse processo ser comparado com a arroteia para a agricultura, a que está associada a arroteia para pastorícia, numa proporção que, de acordo com Carlos Aguiar (se a minha memória não estiver a trair o que diz Carlos Aguiar), estará na proporção de 5 a 7 hectares pastoreados para um hectare cultivado, se se quiser manter a fertilidade necessária à produção agrícola.

Provavelmente este processo, quinhentos anos antes das descobertas, teve muito mais influência no recuo das matas, como se depreende do facto das alterações da linha de costa da região Centro começarem a ser visíveis desde o século X, e estarem bastante avançadas já no tempo de D. Dinis, o suficiente para o assustar com o avanço contínuo das areias que formaram a ria de Aveiro, muito antes das Descobertas, portanto.
Também não entendo como diz que em meados do século XIX, quando são criados os serviços florestais, o país estava praticamente desarborizado (no que estamos de acordo) e imputa ao caminho-de-ferro um papel relevante na desarborização. É que o caminho-de-ferro começa a expandir-se na segunda metade do século XIX, tendo o seu apogeu pelos anos 40 e 50 do século XX, num processo totalmente contemporâneo da expansão da taxa de arborização do país.

O mesmo tipo de incongruência temporal é visível no seu argumento de que o eucalipto empurrou as populações para fora do mundo rural “Além de terem acabado com os Serviços Florestais, "obrigaram" o povo a abandonar os montes por estarem eucaliptados”.
É que o processo de abandono rural e emigração é dos anos 50 e, sobretudo, da década de 60 do século XX, e a expansão do eucalipto dada sobretudo dos anos 80 e 90 (mesmo que se considere a década de 70 como a do arranque da expansão do eucalipto, já o povo tinha abandonado os montes). Ou seja, há, no seu artigo, uma clara inversão das relações de causa/ efeito: é o abandono rural que abre espaço ao eucalipto (em rigor, à produção florestal, juntamente com a substituição dos estrumes orgânicos pelos adubos de síntese) e não o eucalipto que empurra o povo para fora da montanha. Usando a sua terminologia, é o povo que empurra o eucalipto para as serras e não a inversa.

Também não tem qualquer base factual a sua afirmação de que “os eucaliptais, tal como os pinhais (resinosos), também ardem melhor que as florestas de folhosas, por produzirem essências”.
Um eucalipto ou um pinheiro até podem arder melhor que um carvalho, mas num povoamento o que interessa é a estrutura do povoamento, e não a essência dominante.

É assim que, por esta ordem, ardem mais os matos (que foi o que foi substituído pela produção florestal, os carvalhais há muito que não existiam a não ser alguns vestígios reliquiais), depois os pinhais e depois os eucaliptais. A amostra para carvalhais é demasiado pequena, e muito sujeita a erros, mas os dados (poucos e imprecisos) sugerem que ardem bem mais que os pinhais e eucaliptais.
A explicação é simples: a grande maioria dos carvalhais que temos são carvalhais jovens, resultantes do intenso processo de regeneração natural que está a ocorrer como consequência do abandono rural, e não povoamentos maduros em que a sombra controla os matos heliófilos, comportando-se em relação ao fogo mais como matos altos que como carvalhais maduros.

Mas, mais importante, os eucaliptais, como os pinhais e os carvalhais, não são todos iguais, e todos eles ardem mais ou menos em função da estrutura do povoamento.
É assim que os eucaliptais do minifúndio das regiões de elevada produtividade primária ardem mais que os eucaliptais das celuloses, geridos intensamente e com taxas de prevalência do fogo que são menos de um quarto da média do país.

Paulo Fernandes demonstra isto de forma muito clara quando compara vários povoamentos e os caracteriza em função da espécie dominante e da sua estrutura, concluindo, como aliás é intuitivo, que a estrutura do povoamento é muito mais relevante que a espécie dominante para avaliar a sua relação com o fogo.
Se dúvidas houvesse, o incêndio do Caldeirão do ano passado, que atingiu cerca de vinte mil hectares, percorreu, em 90%, áreas de sobreiro, que ardeu como arde qualquer árvore (como cada espécie reage depois ao fogo é outra discussão, mas que todas ardem, disso não há dúvida).

Não gostaria de terminar sem falar de alguns aspectos em que estamos de acordo, seguramente:
1)      É o abandono e o crescimento dos matos que está na origem deste padrão de fogo;
2)      É preciso encontrar formas de gerir este combustível que todos os anos se acumula no nosso mundo rural (não só nas matas de produção mas em dois terços do território, com ou sem povoamentos florestais)
3)      O combate deveria ser profissionalizado, levado a cabo por profissionais da floresta (eu diria da paisagem, mas com certeza serei acusado de corporativista) que a conhecem e que todo o ano trabalham nela

Peço-lhe por isso que leia esta petição (http://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=P2013N70639) e, se achar razoável, que nos ajude a dar-lhe divulgação e a centrar a discussão nos dois pontos em que estamos de acordo: 1) A organização de uma gestão profissional do fogo; 2) A necessidade de encontrar formas de gerir o combustível que se acumula.
É que por mais que estranhe a sua visão do futuro do país com “as nossas montanhas cobertas de rocha nua” numa altura em que a recuperação dos sistemas naturais nunca terá sido tão pujante e intensa, penso que na definição de modelos de actuação prática estaremos de acordo no essencial.

Com as minhas desculpas pelo atrevimento deste leigo em criticar quem seguramente sabe mais,
henrique pereira dos santos

5 comentários:

Anónimo disse...

Ora, nem mais!

Da carta do HPS ao Professor Jorge Paiva gostei particularmente da seguinte passagem:


«Com as minhas desculpas pelo atrevimento deste leigo em criticar quem seguramente sabe mais» (HPS)

O que fazia falta ao HPS é precisamente de um banho de humildade e vontade de reflectir e problematizar as banalidades contabilísticas que circulam por aí.

É que tal como nas empresas, também nas florestas e no ambiente há uma grande diferença entre contabilistas (que tratam de números e se «vendem» a quem lhes oferecer mais dinheiro) e os economistas ( que têm obrigação de ter um conhecimento mais profundo e reflexivo).



Jaime Pinto disse...

O Prof. Jorge Paiva é uma pessoa verdadeiramente extraordinária, tive o prazer de o conhecer pessoalmente em acções de luta à antiga portuguesa pela natureza e o ambiente. Para além dos seus inigualáveis conhecimentos técnicos e científicos, é um cidadão que se preocupa com as desigualdades sociais e pobreza, incluindo, é evidente, a dos serranos. Neste sentido, tenho a certeza que não deixará de compreender que pessoas com rendimentos baixíssimos plantem nas terras que lhe calharam por herança uma espécie que, pese embora predicados justamente hostis, o menor será porventura a fealdade, permite aos pobres terem uma vida mais digna. A alternativa aos eucaliptos, na generalidade dos casos, é o abandono aos matos e pinheiros nascediços de baixo ou nenhum rendimento (conforme o ciclo do fogo) que ardem com idêntica perigosidade nos fogos de verão.

Algo que me entristece profundamente é facto dos responsáveis e sumidades que botam discurso na tv e jornais sobre fogos, diagnosticando causas e propondo curas, sistematicamente se esquecerem das cabras, essas fantásticas máquinas da prevenção, proto-bombeiras, fábricas únicas de cabritos, excelentes queijos e estrume para as hortas. Desde que tiraram os pequenos subsídios que contemplavam os proprietários de rebanhos na serra (mantendo-os no Ribatejo e Alentejo por artes da anatomia dos pastos) os serranos começaram a despachá-las para o talho. É quase espécie rara, os javalis já as terão ultrapassado em número. Presumo que uma dúzia de cabras por família seria suficiente para a indústria dos incêndios movimentar umas dezenas de milhões a menos.

Anónimo disse...

Boa noite a todos,

trabalhando com a árvore feia desde à 9 anos na Serra de Monchique, nos últimos dias ando um pouco confuso com o ano em que estou, se em 2013 ou 88-89, tal a quantidade de noticias e opiniões, e algumas de pessoas válidas sobre a árvore feia e exótica e a sua ligação ao fogo. Penso que é tão redutora e um pouco injusta, caso contrario já não havia um pau de eucalipto em pé porque estavam todos queimados. Em 2004 no Caldeirão e em 2012 na Catraia em Tavira, que eu saiba não havia eucaliptos, mas um matagal no meio dos sobreiros, que levou aquelas tragédias. Ou seja, como já foi aqui dito por várias pessoas é a estrutura e não a espécie que provoca e promove os fogos. Com isto, não quero dizer que o eucalipto com as suas folhas adultas cheias de cineol ou com a casca não provoque as chamadas projeções, mas não existe uma relação causa-efeito, até porque em áreas bem geridas, vulgo empresas, as áreas ardidas são poucas. Esta árvore feia é responsável por o sector da pasta possuir o maior VAB a nível industrial do país, passando a GALP e Auto-Europa, e que faz ainda mexer o depauperado mundo rural e assim, penso que devia ser mais acarinhada ou pelo menos não diabolizada. Com isto não quer dizer que 750 mil ha possam ser a mais, porque provavelmente se podia reordenar e rearborizar com clones/sementes melhoradas mais produtivos e assim diminuir a sua área total. Mas pergunto, caso não houvesse aquela quantidade, será que estávamos cheios de carvalhos no norte e centro? Ou seriam mais matos, porque o eucalipto o que foi apanhar, foram muitas áreas abandonadas e já vazias devido à e(i)migração? Aqui no Algarve foi o que se passou na maior parte dos casos de Aljezur e Monchique, onde nos finais dos anos70 ainda se cultivava trigo neste concelho. Entre ver trigo a estragar os solos em Monchique ou o esteval nas terras montanhosas em Aljezur, prefiro ver eucalipto. Como é obvio com ordenamento e prevenção ( onde estão as Redes Primárias?) e não o barril que a Serra se encontra. Este ordenamento devia passar por uma melhor compartimentação da paisagem, bem como, um faseamento na altura dos cortes.
Enfim, eu só um jovem e felizmente com muita pouca experiência nos fogos. Como alguém disse, não quero glorificar o eucalipto, que até o acho bonito quando adulto e de primeiro pé, mas fazer uma correlação fogo-árvore e diaboliza-la acho um exagero.

Por fim, e utilizando uma linguagem futebolista, o pessoal do Barcelona não se queixa dos exóticos Messi e Neymar a jogarem no Barça ou o exótico Ronaldo no Real. Ou quando o meu exótico colega, Henk Feith, questionou em relação ao Carvalho Americano, eu pergunto às pessoas no Algarve se não acham lindo essa exótica erva "azeda" que inunda os campos do barlavento.

Enfim, saudações de um engenheiro pertencente a uma profissão em vias de extinção, a florestal.

Paulo Maio

RioD'oiro disse...

Off topic:

http://joannenova.com.au/2013/09/voter-crush-the-carbon-tax-and-corruption-worst-australian-government-gone/

Anónimo disse...

O sr. Jaime Pinto refere no seu comentário que as cabras eram uma boa ajuda para travar os incêndios. Também li na comunicação social há mais de um ano que na região raiana se iria incrementar as cabras precisamente com esse fim. Não se aplicaria aqui o ditado popular mal vai o ganho que me dá perca, sabendo-se que as cabras tudo dizimam, arbustos novos e até esfolam as árvores. Gostaria ver
aqui um esclarecimento.

Cumprimentos (antonio)